5. Encruzilhadas da tirania


Encruzilhadas da tirania

Em nome da eficiência, os governantes reclamam com frequência o direito de se rodearem de pessoas da sua confiança pessoal e de só a essas confiarem as tarefas principais da administração.
Perante essa reivindicação, de imediato se levantam sérios problemas:
– o primeiro, ainda que à primeira vista não o pareça, é o de saber o que se entende por “confiança pessoal”; se essa confiança tem a ver com as capacidades técnicas, intelectuais e executivas ou se antes tem a ver com o facto de perfilharem ou não o mesmo credo político;
– o segundo, é a constatação do perigo real de que a confiança baseada na profissão do mesmo credo político passe para segundo plano ou até que menospreze a exigência de competência técnica, na área sobre a qual a pessoa escolhida vai ter responsabilidades;
– o terceiro consiste em saber o que se entende por “político”, sendo verdade que na prática – e os exemplos abundam – se corre o risco de considerar a “confiança política” como um sinónimo de “confiança partidária”, entendido o “partidário” no sentido de uma militância, com a inscrição prévia num partido e a participação na respectiva actividade, quer através de acções destinadas à formação interna, quer em acções destinadas a exercer influência sobre a opinião pública.
E, a entender-se a “confiança política” como referida à militância partidária, outro problema se levanta, que é o de saber como se mede essa militância, isto é, como se verifica o momento a partir do qual ela existe e se justifica: pela simples inscrição nos registos de um partido, pelo tempo decorrido desde essa inscrição, pela fidelidade aos ideais programáticos do partido, pelo trabalho realizado ao serviço desses ideais, pela intensidade da própria actividade de militância…
Põe-se a questão de saber em que medida podem se objecto de confiança política os cidadãos que, inscritos como militantes de um partido, depois se transferiram para outro, sendo verdade que essa transferência depende muitas vezes da conjuntura e quase sempre há sérias razões para duvidar se essa mudança corresponde à seriedade das convicções ou se é resultado do mero oportunismo carreirista, cujo objectivo é apenas o de manter ou de conseguir lugares e benefícios. O problema é tanto mais grave quanto essas transferências acontecem nas vésperas e a pouco tempo de previsíveis alterações do panorama político ou pouco tempo depois de essas alterações se terem consumado. A intempestiva transferência da inscrição num partido político para outro, ou uma atitude equivalente, deverá, pelo contrário, encarar-se como razão bastante para se levantarem sérias dúvidas em relação  à confiança política, e não só política (também moral), que um cidadão merece.

Em face destes problemas, convém fazer algumas observações:
– a confiança política não deve confundir-se com confiança partidária, isto é, não corresponde ao alinhamento por um determinado partido político e muito menos o comprometimento positivo em acções de militância partidária;
– a confiança política não pode também ser confundida com a confiança ou a simpatia pessoal do dirigente ou superior hierárquico;
– a confiança política deve basear-se na convicção de que o cidadão investido nalgum cargo assume como próprio o compromisso de concretizar um determinado projecto, não pelas vantagens específicas que pode carrear para o partido, mas pelo interesse para o conjunto dos cidadãos: a partir do momento em que uma formação proposta por um partido político assume o poder, não governa (ou não deve governar) para satisfazer os interesses do partido mas para conseguir o bem de toda a comunidade.
O cidadão proposto para o exercício de um cargo deve ter plena consciência de que não o é para pôr em prática um projecto de afirmação própria, quer pessoal quer dos seus superiores, ou a concretização de um programa com que simpatizara anteriormente, mas sim para dar execução a um programa que foi amplamente sufragado.
A certeza de que está empenhado na concretização de um determinado programa, não significa que o cidadão esteja dispensado de possuir a necessária competência técnica e legal para o levar à prática.
Por outro lado, não se podem arrumar na prateleira, de ânimo leve, pessoas dotadas de reconhecida competência e até com experiência de trabalho na mesma área, só porque não estão inscritos nem são militantes no mesmo partido – por vezes, assumindo-se verdadeiramente como independentes – embora tivessem posto todo o esmero na execução de tarefas que lhe foram cometidas. Muito mais grave será excluir as pessoas pelo simples facto de que em momentos anteriores deram o melhor de si para desempenhar cabalmente as funções em que estavam investidas, sem olhar ao credo partidário dos responsáveis, a que então serviam, como agora estariam dispostos a fazer, sob a dependência de governantes eleitos por outra formação política. Penalizar essas pessoas é o mesmo que penalizar o cumprimento do dever, a nobreza de carácter, a lealdade e todos os bons princípios.

          Acontece infelizmente que, em certos países menos desenvolvidos, as mudanças de governo, sobretudo quando resultam da mudança dos partidos na sede do poder, correspondem à mudança de um grande número de funcionários. Ora, para além de se tratar de uma situação que, por si, lesa as normas de uma boa conduta por parte de quem governa, tal procedimento introduz a mais ignominiosa perversão que se pode imaginar dentro do próprio Estado. É que os funcionários, os seus familiares e todos os que deles podem receber algum benefício, quando são convocados para as eleições, vão dar o seu voto não às pessoas que lhes parecem mais competentes mas sim àquelas que lhes podem garantir a permanência no emprego e, com ele, o ganha-pão para toda a família, uma vez que a escolha de outra formação política iria conduzir previsivelmente ao afastamento dos seus lugares, para os facultar aos apaniguados dos novos governantes e aos militantes das formações políticas de que os novos governantes são provenientes. Deste modo se torna impossível a verdadeira democracia, ficando aberto o caminho ao monstro da arbitrariedade.

2002.04.25