1. As origens do poder

  As origens do poder

  Com frequência, e muitas vezes não inocentemente, se tem confundido a teoria da origem do poder com a explicação dos mecanismos da sua transmissão àqueles que o exercem.

  Nas sociedades mais primitivas, a reflexão sobre as origens do poder ou simplesmente se não fazia ou partia de pressupostos que então se consideravam indiscutíveis, apesar de nos tempos actuais aparecerem claramente como muito relativos.
        Mais do que em bases racionais e teóricas, o poder fundamentou-se nas tradições familiares e tribais ou comunitárias, ou impôs-se, sem admitir discussão, pela força real ou virtual das armas, isto é, pela violência física, pela guerra, ou pelo domínio dos recursos naturais adequados a garantir a vitória sobre os rivais e abafar as veleidades dos indivíduos ou grupos discordantes.

Entre as várias teorias que giram à volta de concepções sobre a origem do poder, distinguem-se, do ponto de vista da sua motivação, três grandes linhas:
    – as primitivas, isto é as que surgiram antes de pôr em causa a legitimidade do poder ou das formas do seu exercício, 
  e que, por conseguinte, são pré-racionais, isto é, não resultantes de uma verdadeira reflexão;
    – as que nasceram da necessidade de legitimar o poder ou as formas concretas do seu exercício, 
  quer depois da sua imposição, quer perante a contestação emergente ou previsível;
   – as que resultam de uma reflexão espontânea e livre, não condicionada pelas pressões 
de qualquer instância do próprio         poder.

A reflexão sobre a natureza do poder iniciou-se quando os homens tomaram consciência da pluralidade de formas do seu exercício ou da pluralidade dos mecanismos que a ele conduzem.
    É por isso que tal reflexão aconteceu não em territórios onde havia uma cultura já evoluída sob muitos outros aspectos, como a velha Mesopotâmia e o antigo Egipto, mas submetidos a um poder único, muito forte e centralizado, e com limitados contactos com outros povos, mas sim numa área geográfica, a clássica Grécia, fragmentada em pequenas comunidades estados, que se regiam por normas diversificadas e praticavam diversas formas de exercício do poder.
    A verdadeira questão do poder surgiu quando os grupos humanos necessitaram de garantir a posse do território ou dos recursos económicos. São elementares as formas de poder anteriores a essa situação, como sucedia com o poder do pai de família, a quem competia zelar pela boa harmonia entre todos os parentes e pela guarda das tradições familiares e culturais, entre as quais, em primeiro lugar as crenças e práticas religiosas.

A teoria da origem divina do poder, ao contrário do que se lê ou do que é suposto por muitos escritores modernos, não conduz necessariamente à monarquia e muito menos à monarquia absoluta ou às formas extremas do regalismo.
    De facto, uma coisa é admitir a origem divina do poder, no plano ontológico, e outra coisa é reduzir elementarmente a forma de transmissão do poder a uma comunicação directa, quase mecânica, entre a divindade e o monarca.
    Tomás de Aquino, que naturalmente defendia, no plano ontológico, a origem divina do poder, recusar-se-ia a aceitar as ideias de Richelieu, e admitia mecanismos de funcionamento desse mesmo poder compatíveis com os princípios da moderna democracia.
    Um dos princípios que deve nortear a organização do poder é o da justa proporcionalidade. Isto significa que uma estrutura ou órgão de autoridade deve ter apenas os poderes necessários para a consecução dos seus fins. É inaceitável a existência de organizações mais complexas e poderosas do que o necessário para o funcionamento harmonioso da sociedade. 

1997-08-01

Reflexões


Sobre o poder

Caminhos da liberdade – 1. As origens do poder
Caminhos da liberdade – 2. Onde está a democracia?
Caminhos da liberdade – 3. Limites da democracia
Caminhos da liberdade – 4. Liberdade e censura
Caminhos da liberdade – 5. Encruzilhadas da tirania



Identidade local

O génio do Alto Minho
O “redimensionamento” das freguesias



5. Encruzilhadas da tirania


Encruzilhadas da tirania

Em nome da eficiência, os governantes reclamam com frequência o direito de se rodearem de pessoas da sua confiança pessoal e de só a essas confiarem as tarefas principais da administração.
Perante essa reivindicação, de imediato se levantam sérios problemas:
– o primeiro, ainda que à primeira vista não o pareça, é o de saber o que se entende por “confiança pessoal”; se essa confiança tem a ver com as capacidades técnicas, intelectuais e executivas ou se antes tem a ver com o facto de perfilharem ou não o mesmo credo político;
– o segundo, é a constatação do perigo real de que a confiança baseada na profissão do mesmo credo político passe para segundo plano ou até que menospreze a exigência de competência técnica, na área sobre a qual a pessoa escolhida vai ter responsabilidades;
– o terceiro consiste em saber o que se entende por “político”, sendo verdade que na prática – e os exemplos abundam – se corre o risco de considerar a “confiança política” como um sinónimo de “confiança partidária”, entendido o “partidário” no sentido de uma militância, com a inscrição prévia num partido e a participação na respectiva actividade, quer através de acções destinadas à formação interna, quer em acções destinadas a exercer influência sobre a opinião pública.
E, a entender-se a “confiança política” como referida à militância partidária, outro problema se levanta, que é o de saber como se mede essa militância, isto é, como se verifica o momento a partir do qual ela existe e se justifica: pela simples inscrição nos registos de um partido, pelo tempo decorrido desde essa inscrição, pela fidelidade aos ideais programáticos do partido, pelo trabalho realizado ao serviço desses ideais, pela intensidade da própria actividade de militância…
Põe-se a questão de saber em que medida podem se objecto de confiança política os cidadãos que, inscritos como militantes de um partido, depois se transferiram para outro, sendo verdade que essa transferência depende muitas vezes da conjuntura e quase sempre há sérias razões para duvidar se essa mudança corresponde à seriedade das convicções ou se é resultado do mero oportunismo carreirista, cujo objectivo é apenas o de manter ou de conseguir lugares e benefícios. O problema é tanto mais grave quanto essas transferências acontecem nas vésperas e a pouco tempo de previsíveis alterações do panorama político ou pouco tempo depois de essas alterações se terem consumado. A intempestiva transferência da inscrição num partido político para outro, ou uma atitude equivalente, deverá, pelo contrário, encarar-se como razão bastante para se levantarem sérias dúvidas em relação  à confiança política, e não só política (também moral), que um cidadão merece.

Em face destes problemas, convém fazer algumas observações:
– a confiança política não deve confundir-se com confiança partidária, isto é, não corresponde ao alinhamento por um determinado partido político e muito menos o comprometimento positivo em acções de militância partidária;
– a confiança política não pode também ser confundida com a confiança ou a simpatia pessoal do dirigente ou superior hierárquico;
– a confiança política deve basear-se na convicção de que o cidadão investido nalgum cargo assume como próprio o compromisso de concretizar um determinado projecto, não pelas vantagens específicas que pode carrear para o partido, mas pelo interesse para o conjunto dos cidadãos: a partir do momento em que uma formação proposta por um partido político assume o poder, não governa (ou não deve governar) para satisfazer os interesses do partido mas para conseguir o bem de toda a comunidade.
O cidadão proposto para o exercício de um cargo deve ter plena consciência de que não o é para pôr em prática um projecto de afirmação própria, quer pessoal quer dos seus superiores, ou a concretização de um programa com que simpatizara anteriormente, mas sim para dar execução a um programa que foi amplamente sufragado.
A certeza de que está empenhado na concretização de um determinado programa, não significa que o cidadão esteja dispensado de possuir a necessária competência técnica e legal para o levar à prática.
Por outro lado, não se podem arrumar na prateleira, de ânimo leve, pessoas dotadas de reconhecida competência e até com experiência de trabalho na mesma área, só porque não estão inscritos nem são militantes no mesmo partido – por vezes, assumindo-se verdadeiramente como independentes – embora tivessem posto todo o esmero na execução de tarefas que lhe foram cometidas. Muito mais grave será excluir as pessoas pelo simples facto de que em momentos anteriores deram o melhor de si para desempenhar cabalmente as funções em que estavam investidas, sem olhar ao credo partidário dos responsáveis, a que então serviam, como agora estariam dispostos a fazer, sob a dependência de governantes eleitos por outra formação política. Penalizar essas pessoas é o mesmo que penalizar o cumprimento do dever, a nobreza de carácter, a lealdade e todos os bons princípios.

          Acontece infelizmente que, em certos países menos desenvolvidos, as mudanças de governo, sobretudo quando resultam da mudança dos partidos na sede do poder, correspondem à mudança de um grande número de funcionários. Ora, para além de se tratar de uma situação que, por si, lesa as normas de uma boa conduta por parte de quem governa, tal procedimento introduz a mais ignominiosa perversão que se pode imaginar dentro do próprio Estado. É que os funcionários, os seus familiares e todos os que deles podem receber algum benefício, quando são convocados para as eleições, vão dar o seu voto não às pessoas que lhes parecem mais competentes mas sim àquelas que lhes podem garantir a permanência no emprego e, com ele, o ganha-pão para toda a família, uma vez que a escolha de outra formação política iria conduzir previsivelmente ao afastamento dos seus lugares, para os facultar aos apaniguados dos novos governantes e aos militantes das formações políticas de que os novos governantes são provenientes. Deste modo se torna impossível a verdadeira democracia, ficando aberto o caminho ao monstro da arbitrariedade.

2002.04.25

4. Liberdade e censura

Liberdade e censura

A liberdade é aquele dom interior que nos permite ser sem constrangimento aquilo que realmente somos! A primeira sede da liberdade é o interior do homem: a liberdade propriamente dita, a liberdade por excelência, está dentro de nós.
Uma parte das limitações à verdadeira liberdade reside nos preconceitos, que constituem um emaranhado impuro de liames que abafa a espontaneidade.
As primeiras e mais graves limitações da liberdade são as que se instalam no íntimo do próprio ser humano. Os vícios, os defeitos de formação pessoal, os erros e os preconceitos impedem aquela clareza de horizontes que devia existir no coração do homem, quando está para fazer as opções e tomar as decisões que materializam a sua liberdade.
Infelizmente, o homem, embora tão digno, apresenta-se também como um ser extremamente frágil, de tal modo que muitos factores de ordem externa acabam por condicionar o seu mundo interior.
Se as sociedades antigas eram propícias à radicalização dos preconceitos, no mundo moderno assistimos com insistência ao exercício dos mais variados processos orientados no sentido de condicionar psicologicamente os indivíduos e as comunidades, com as ditas lavagens de cérebro, as campanhas publicitárias, a manipulação das multidões.
Felizmente, ainda há muitas personalidades fortes, animadas por inteligências esclarecidas, que conseguem manter-se independentes na sua capacidade interior de julgarem e disporem de si mesmos. O perigo está em que essas inteligências não floresçam em número suficiente para proporcionarem um verdadeiro equilíbrio da sociedade.

As maiores limitações da liberdade são constituídas por várias formas de violência exterior, e muitas vezes os que por elas são responsáveis pretendem justificar com a defesa de princípios – religiosos, morais, políticos, culturais –  até as próprias ofensas aos mais incontestáveis direitos da liberdade e da democracia.
Essa violência é tanto mais grave quanto muitas vezes não só limita a concretização externa das decisões interiores, mas também acaba por afectar a liberdade interior, quando as pessoas são de tal modo vilipendiadas que a sua situação material as faz conhecer os limites da abjecção.
A violência que coarcta a liberdade concretiza-se de vários modos:
– imposição directa e explícita de pontos de vista e comportamentos. Os indivíduos são constrangidos a participar em manifestações, a fazer declarações e a assinar documentos cujo conteúdo está em oposição com as suas convicções profundas; os que não acatam essas imposições tornam-se vítimas de múltiplas sanções: multas pecuniárias, sevícias, mutilações, prisão, sequestro de bens, perda de emprego ou impossibilidade de a ele aceder, penalizações na avaliação e afastamento ou impossibilidade de evolução na carreira profissional.
Por vezes – e isso torna-se psicologicamente mais doloroso – a violência atinge não só a pessoa directamente visada mas também os seus familiares e parentes, sem excluir as próprias crianças, que se tornam vítimas de maus-tratos e de descriminações injustificadas.
O receio da indigência material leva muitas pessoas a ceder e a acatar as imposições dos tiranos. Depois de cair na miséria, para se libertar da abjecção material que as aflige, acabam por se sujeitar, ainda que, para cúmulo, suceda com frequência que não consigam recuperar a situação anterior e continuem a ser vítimas das mesmas senão até de maiores injustiças. A sua indignidade, porém nunca suplantará a daqueles que, desprovidos de escrúpulos, são capazes de calcar aos pés todos os princípios, desde que isso lhes abra as portas às benesses do poder.

Modernamente assistimos a uma nova forma de violação da liberdade mais subtil, e, por isso mesmo, mais cínica e mais ignóbil.
A organização do mundo actual faz com que muitas pessoas e instituições, para sobreviverem e realizarem os seus fins, dependam dos apoios de entidades que detêm o poder e, com ele, a possibilidade de dispor dos meios financeiros. Aqueles que timbram em defender a sua independência, mantendo-se incólumes à corrupção, são postos de lado, enquanto os que abdicam da sua dignidade são servidos com generosidade à mesa do poder.
Noutros tempos, os redactores de jornais e revistas, assim como os autores de livros e de outras publicações literárias eram obrigados a submeter as suas obras à censura oficial, antes de as facultarem ao público, o que só podiam fazer depois de obterem a aprovação e de, para isso, sofrer os eventuais e frequentes cortes. Esta situação ainda se mantém em vários países. Hoje, porém, em certos meios “mais evoluídos”, praticam-se formas de censura mais cínicas, mas subtis e eficientes. Os jornais são excluídos da publicação remunerada de avisos e editais e os editores de livros e revistas e, em geral, de obras não gratas ao stablishment, são pura e simplesmente excluídos dessas benesses e vêem restringidos os seus meios e as suas possibilidades de acção.
2001/07/25

3. Limites da democracia



Limites da democracia


I
A democracia tem sido definida de uma forma rudimentar, em tempos recentes, como o governo da maioria. Rigorosamente, porém, acaba por ser o governo de uma minoria, com frequência muito restrita, que consegue ser eleita por uma maioria muito relativa: a maior das minorias!
O acesso ao poder é muito condicionado. Dentro de cada grupo, há uma pequena minoria, já instalada, de que depende a aceitação dos possíveis candidatos a exercer funções de governo. Essa candidatura, salvo em casos muito estratégicos (de interesse para o mesmo grupo), só pode, aliás, se apresentada por quem já dele faça parte.

 II
Se o princípio que está na base da democracia – a proporcionalidade – fosse levado até às últimas consequências, não se registariam algumas anomalias, que, para mal de todos, são frequentes:
1. O governo em minoria, que acontece quando um grupo obtém maior número de votos que qualquer um dos outros grupos, que no seu conjunto obtiveram maior número de votos – é a chamada maioria relativa. Este tipo de governo traz dentro de si um contra-senso, que frequentemente o leva a abortar, a não ser que se verifique uma de duas situações, também anómalas. O contra-senso está em que, para ser verdadeiramente democrático, esse governo deveria cumprir um programa correspondente não às opções de uma minoria (a maioria relativa que o elegeu), mas às da maioria dos súbditos, distribuídos por várias minorias, cujos programas não são, no entanto, unívocos e por vezes até se apresentam como total ou parcialmmente opostos entre si e ao do grupo que governa.
As situações anómalas que impedem um governo deste tipo de abortar, podem enunciar-se deste modo:
– a minoria predominante faz seu o programa das maiorias que se lhe opunham, ou pelo menos o de alguma ou de algumas delas;
– a minoria predominante faz um acordo com outra minoria, em ordem à reelaboração de um programa aceite pelos dois grupos;
– a minoria predominante limita-se a tomar o mínimo de decisões que possam encarar-se como hostis aos programas de todas ou de uma parte das outras minorias; não dispondo de um apoio estável, um governo desta índole está sempre à beira da crise; esta forma de governo, cuja fraqueza é evidente, pretenderá justificar-se muitas vezes como baseada numa tentativa de permanente conciliação, através da negociação e do diálogo, que de facto poderá conduzir à implementação de medidas positivas e concretas, mas acabará por se limitar a questões muito circunscritas e pontuais e a não corresponder a uma governação eficaz e coerente;
– idêntica à anterior é a situação de um governo de minoria predominante que, para funcionar, exerce uma acção premeditada, no sentido de evitar que as outras minorias se ponham de acordo e levem ao seu derrube. Mais do que executar um programa, este governo preocupa-se em levar por diante uma estratégia de sobrevivência, mediante uma série de “golpes” orientados no sentido de pôr uns contra os outros os grupos da oposição e de lhes retirar as bases de apoio, com a implementação de medidas demagógicas.


1997-08-13

2. Onde está a democracia




Onde está a democracia?

A democracia moderna, que assim se diz para a distinguir da democracia grega, tem sido apresentada como a formas de governo mais perfeita, ou pelo menos, em termos realistas, como a menos imperfeita ou menos má, entre todas as formas de governo que se conhecem.
Ora a verdade é que, embora o risco de perversão seja maior numas do que noutras situações, quase todas as formas de governo em cujo exercício os detentores do poder respeitarem os princípios basilares que as informam e se mantiverem dentro das barreiras da justiça e da equidade, se podem considerar aceitáveis pelo menos em determinadas circunstâncias históricas.
Por outro lado, é inegável que em todas as formas de governo se podem gerar e desenvolver os germes da perversão. Existem sempre, com efeito, muitos factores que podem ser desviados das suas verdadeiras funções e reencaminhados de acordo com os interesses ou os caprichos dos intervenientes.
Nas formas de governo não democráticas as perversões (só) podem ser evitadas ou minimizadas por uma consciência moral muito forte, em geral apoiada em convicções religiosas profundas; mas se, nesta situação, o risco de perversão é menor, também, no caso de ela acontecer, as sequelas se revelarão mais profundas e marcantes, de modo que se tornará mais difícil superá-las e será mais trabalhoso reparar as feridas que infligiram à sociedade. As formas extremas da perversão registam-se quando, em vez das serenas convicções religiosas, os detentores do poder se deixam guiar pelo fanatismo.
A democracia reúne as condições para ser não uma forma de governo menos sujeita ao risco das perversões, mas sim aquela onde as perversões não atingem tanta extensão e gravidade, e, por conseguinte, mais facilmente se pode encontrar remédio contra as suas sequelas.
1997-08-12

A facilidade com que todos os cidadãos têm acesso aos órgãos de governo, num regime democrático, e a possibilidade de uma renovação frequente do elenco dos que exercem as funções da governação, é, por um lado, adequada a evitar a permanência no poder daqueles que são menos aptos ou que estão interessados em corromper a democracia em prol dos seus interesses ou dos seus caprichos, mas, por outro lado, facilita com frequência o acesso dos mais incompetentes e dos mais perversos, dando lugar ao esbanjamento de energias, às fases de inércia e aos frequentes episódios de corrupção.
1997-08-13

O “redimensionamento” das freguesias


O momento que ocasionou esta reflexão já foi (embora, em nosso entender, mal) ultrapassado. Para a história, aqui fica o testemunho.


 Estamos perante uma temática que ciclicamente tem saído à ribalta para se mostrar na cena política. Só que desta vez com uma veemência inusitada, aparentemente antecedida por um longo e maduro estudo, cujas conclusões de repente se afirmam como inelutáveis e avassaladoras, impassíveis de qualquer contraditório.

A última vez que o assunto fora agitado remonta aos alvores de 2006, defendendo-se também então uma reforma que se considerava inadiável, embora acabasse por predominar a sensatez, adiando-a para melhores dias.
Agora, em momento de aguda crise económica, o tema volta à ordem do dia. Lamentável é que por vezes seja visto apenas como um apêndice das medidas financeiras destinadas a equilibrar o orçamento do estado, e que, no fundo, se pretenda resolver o problema “com a régua e o esquadro”.
É necessário reflectir sobre as funções das freguesias nos tempos actuais. Não se podem alterar de repente realidades que têm vários séculos.
Em primeiro lugar há que definir as funções que competem à freguesia. Não será que nos últimos tempos se lhe tem atribuído outras, que competiriam aos municípios e ao governo central, enquanto, por vezes, as que lhe competiriam lhe são sonegadas?
As alterações que venham a fazer-se exigem ponderação e tempo de análise e reflexão. Devem apoiar-se num estudo prévio, que contemple um inventário das freguesias com dificuldades em cumprir as funções que lhe competem. Requere-se também um estudo de simulação do que sucederá na hipótese da extinção ou da anexação de uma freguesia.
É demasiado simplista e problemático, como se propunha em 2006, fazer-se depender a sobrevivência de uma freguesia da existência ou não de um número arbitrário de eleitores ou de habitantes – 3000, 1000, 500 – ou da percentagem de habitantes por quilómetro quadrado, como se refere na proposta recente. Trata-se de critérios apriorísticos, que, em muitos casos, se revelarão desajustados. No caso do critério baseado no número de habitantes por metro quadrado, adverte-se que, em determinadas circunstâncias, da sua aplicação resultarão conclusões nitidamente grosseiras, porque uma freguesia de população relativamente concentrada, em cujo termo se inclui uma extensa área de montanha sem habitantes e sem condições de os acolher, em certos casos, nem sequer dependente da administração das autarquias, não se pode comparar com outras freguesias porventura com menor número de habitantes e até menos densamente distribuídos pelo território, mas sem incluírem essas extensas áreas de deserto demográfico.
Além do número de habitantes e da sua concentração, não podem esquecer-se factores como o isolamento, a distância em relação a outros aglomerados habitacionais, a disponibilidade de recursos próprios, etc.
Do mesmo modo que se admite uma diferença de estatuto entre concelhos com pequeno número de freguesias e outros em que esse número é elevado, e o mesmo se diga em relação ao número de habitantes, para tudo se deve encontrar uma solução equilibrada, que pode não ter um figurino único, e deve ser estudada e implantada em ampla consonância com as populações.

     Não queremos terminar este comentário sem fazer duas perguntas:


     1. Porque é que, em vez de talhar à tesoura e coser dentro dos gabinetes esses amontoados de freguesias, se não procede em relação a elas como sucedeu em relação aos concelhos, promovendo a sua associação livre e dando-lhes assim a faculdade de se associarem livremente em agrupamentos ou comunidades de freguesias?


     2. Como ficarão representadas no interior da nova entidade os núcleos populacionais que constituem as actuais freguesias? Será que já está preparada a legislação adequada para definir o modo como funcionarão essas novas entidades? Como se integrarão no conjunto os bens, as necessidades e os interesses de cada uma das actuais freguesias (cemitérios, caminhos, "baldios", etc.)?


    Esperemos que a precipitação não conduza o país a um maior abismo.